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A doação de órgãos pode reparar o luto?

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Um dia feliz, uma festa, uma viagem… e, de repente, um grave acidente. Chega a notícia à família. O jovem, promessa de um futuro brilhante, está no hospital entre a vida e a morte.

Algumas horas depois, a família recebe uma notícia ainda pior: o filho não resistiu e faleceu. Ao mesmo tempo, os pais são indagados: gostariam de doar os órgãos? Aceitam que o filho, que acaba de partir, salve outras vidas, de pessoas que eles não conhecem e talvez jamais conhecerão?

Seria justo deixar que outras famílias tenham o direito que esses pais não tiveram: salvar um filho? Ou a filha, o pai, a mãe, a irmã… E por que as outras famílias não teriam esse direito? Começa um dilema sem que os pais sequer tenham tido tempo de chorar pela morte do filho.

Se demorarem a responder, não haverá tempo hábil para que sejam efetuados os procedimentos necessários à doação dos órgãos. Já se passaram horas desde que uma sequência de exames foi feita para constatar a morte. Medicamentos mantém o corpo vivo, mas os órgãos, hora após hora, vão se deteriorando, porque não há mais funcionamento cerebral.

Enquanto a família vive o luto e o drama de tomar uma das decisões mais difíceis da vida, cerca de sete pessoas, ou até mais, aguardam ansiosas pelo “sim” e renovam a esperança em sobreviver a um problema grave de saúde.

O que esperar dos pais que acabam de perder um filho tão amado? O que dizer às famílias que vivem, há meses ou anos, o risco de perderem seus filhos ou outro ente querido? E das pessoas que perderam a qualidade de vida, a esperança, a autoestima enquanto aguardam ansiosas pelo bom resultado de uma conta que nunca fechará, pois há mais pessoas aguardando órgãos para transplante do que doadores e hospitais em condições de realizar os procedimentos?

Vivendo o luto

A perda de um ente amado nos remete ao mais doloroso e intenso dos sofrimentos humanos: a dor da morte. Somos capturados e praticamente lançados para um lugar vazio e estagnado. Nós não fomos preparados para lidar com as perdas e, por isso, estamos sempre nos defendendo dos perigos, seja por meio de sintomas de ansiedade, seja procurando manter a vida sempre em um compasso estável e racionalmente calculado.

Fazer todo esse movimento não está somente associado à dor da perda, mas a um estado em que só a experiência de morte pode nos remeter: o desamparo. “Sentimos” o vazio da morte de alguém muito querido como se tudo o que foi antes preparado caísse por terra. Como se as fronteiras internas de defesa psíquica se rompem, o mundo se torna sombrio e perigoso e a sensação de solidão não é mais algo meramente imaginário, é sentida na pele a dor da ausência do outro dentro de mim.

Para construir todo esse aparato dentro de nós, é necessária a garantia de que as lembranças vividas, os laços construídos e os projetos de futuro com o outro sejam cada vez mais reforçados. Não se pode perder de vista a importância da imagem do outro dentro de nós, para que, assim, a sensação de pertencimento ao mundo vença a tão temível angústia do desamparo.

Com a morte do outro, ocorre um verdadeiro rasgo entre a realidade concreta e a presença interna do ente amado. A morte vem mostrar duramente que é impossível manter as coisas dentro de nós da mesma maneira como eram antes. Agora, mais do que nunca, é preciso encarar a realidade da perda. Mas como fazer isso? Como sair desse estado de paralisia e desespero? Como é possível manter as lembranças vivas daquele que fisicamente já não se encontra mais entre nós?

Quando perdemos alguém muito especial vivenciamos um processo psíquico muito delicado chamado luto. Em Luto e Melancolia (artigo de [1915]), Sigmund Freud aborda o conceito de luto a partir de importantes evidências clínicas. Em um primeiro momento, o sujeito retira sua libido (energia psíquica) e, consequentemente, seu interesse pelo objeto perdido no luto (uma pessoa amada, por exemplo).

Em seguida, é gerado um mecanismo de inibição e gradual desinteresse sobre o mundo. O sujeito enlutado se fecha para proteger o que restou de vivo daquele que não pode mais nutri-lo de novos acontecimentos. Inicia-se, a partir desse momento, o trabalho de elaboração do luto, momento fundamental para que o sujeito possa, internamente, tolerar a angústia do vazio deixado pela perda, e, externamente, procurar reinvestir sua energia, assimilando e reorganizando seu Ego no sentido da continuidade da vida.

Essa seria encruzilhada diante de alguém que sofre a perda de um ente querido: de um lado, a paralisia no luto, de outro, a continuidade da vida em um trabalho de elaboração do luto e de reparação da dor. Frente à paralisia do luto, a consequência mais perigosa seria a melancolia. A vida não só perde todo o sentido, já que não há mais a presença daquele que partiu, mas nós mesmos nos mortificamos como forma de sacrifício e devoção àquele que um dia honrou a relação.

Reparando a perda

Entretanto, a saída mais saudável seria a da elaboração e reparação do luto. Nesse caso, ocorre um reconhecimento da angústia de perda, o desenvolvimento da capacidade de internalizar a dor e, ao mesmo tempo, de ser capaz de pensar o luto como uma passagem necessária.

Além disso, é possível observar um sujeito capaz de suportar sadiamente a frustração, aceitando a importância da história pregressa construída com o ente falecido, buscando, simultaneamente, o equilíbrio necessário para sustentar o vazio, as ambivalências e, principalmente, o pavor de sofrer novas perdas.

O fenômeno da recusa de alguns familiares à doação dos órgãos de seu ente falecido é, na verdade, um retrato complexo da relação que é estabelecida entre a paralisação e a estagnação ante o luto e o necessário desapego aos afetos para que a continuidade da vida seja perpetuada.

É um ciclo vital que precisa ser operado dentro de nós para que possa ser estendido para um outro que luta bravamente para viver. É preciso haver tato e muito cuidado ao lidar com questões tão sutis, porém, não é possível recuar diante da evidência do quanto a vida transcorre em uma sucessiva dinâmica de forças.

A morte, nesse cenário, precisa ser parte do processo de transformação, não um refúgio. Doar os órgãos do ente querido que se foi, então, pode sim ser sinônimo de reparar a dolorosa perda.

Prof. Dr. Rodrigo Otávio Fonseca

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